Você seria amigo do Lobo?

Quem tem medo do lobo-mau, lobo-mau, lobo-mau? Ele pega as criancinhas para… Ops! Será que precisa ser sempre assim? Este é o estereótipo do lobo nas histórias clássicas que tanto causa medo aos pequenos e aos grandes também.

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Então, por que não olharmos para o bichano de outros modos? É o que nos convida a fazer o escritor e ilustrador Alexandre Rampazo no livro “Este é o lobo”, Editora DCL (2016).

O animal imenso e com ar de malvado, de olhar amarelo e penetrante nos é apresentado logo no início da história: este é o lobo. E, a cada página, Alexandre traz um personagem dos contos: a Chapeuzinho, a vovozinha, o caçador, os três porquinhos, a princesa, o príncipe – todos aparecem e somem, ficando apenas o lobo.

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O que será que acontece com eles? Não sabemos, ou melhor, não podemos contar. Mas, à medida que eles vão desaparecendo, a ilustração do lobo vai diminuindo, diminuindo página à pagina, até ele ficar sozinho e tão distante que passamos a  dizer: “aquele é o lobo”. Só restando o animal e o vazio das páginas em branco.

Eis que aparece um menino de pijama, que também logo some. Opa, o menino volta e pergunta: Ei, seu Lobo… quer brincar? O que você acha que ele responde? Que tal ler para descobrir como termina mais essa saga com lobo?

O livro contribui para refletirmos sobre nossos medos, sobre o bom e o mau, sobre a importância de lidarmos com o que nos amendronta, sobre os estereótipos que podem nos aprisionar. Assim como ninguém é só bonzinho ou só mauzinho, há dias em que nos sentimos muito sós, mas quem sabe o menino não venha nos convidar para brincar?

 

A despedida da vida aos olhos de uma criança

“Viver é muito perigoso” (Guimarães Rosa) é o que relembramos ao ler “Iris: uma despedida”, escrito por Gudrun Mebs e ilustrado por Beatriz Martín Vidal, publicado pela Pulo do Gato (2012), por que? Porque nos remete à nossa condição humana em que uma curva do caminho pode mudar tudo.

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Iris é uma menina que acorda, num dia qualquer, com os olhos literalmente virados, é levada ao médico, diagnosticada com uma grave doença e tem o cotidiano familiar virado de cabeça para baixo. Quem nos conta tudo é sua irmã, um ano e dois meses mais nova, que vai buscando dar sentido ao vivido entre o engraçado da visão vesga e as tragédias sucessivas do processo da doença expressas nos gestos dos familiares.

A busca percorre os estágios da doença: o diagnóstico; o significado frio e estático do dicionário (que não dá conta de explicar, nem de aplacar os sentimentos); o silêncio, a agitação e a aflição da família que denotam a gravidade da situação; a compaixão e a solidariedade enviesada dos outros; a cirurgia de emergência; a esperança de que a rotina volte ao que era; até a dor da despedida.

Na família, somente a personagem doente tem nome, visto que as atenções estão dirigidas para ela, demonstrando o quanto num trauma como este apagamos outras subjetividades, outros sofrimentos, inclusive, daqueles que precisam lidar com a situação e com a impotência diante dos fatos. Além deste apagamento, os adultos também excluem a criança de explicações, das conversas, dos procedimentos do tratamento, como se quisessem poupá-la, como se ela também não sentisse a dor da doença da irmã e de sua ausência, a dor da família e a dor da precariedade do afeto.

Entretanto, este comportamento pode expressar uma dificuldade dos adultos de lidarem com a morte, principalmente a de filhos e netos (porque não é da ordem “natural” da vida assisti-los partir), visto que também estão tentando construir sentidos, ou seja, não é porque são adultos que compreendem os mistérios da morte ou sabem as respostas sobre aquilo que é do humano: a finitude.

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As oito imagens de Beatriz Vidal expressam a sensibilidade no tratamento do tema, as flores azuis que vão germinando da cabeça de Iris, se apoderam de seu corpo, transformam-se, encerram e inauguram um novo ciclo de vida, em que se passa a existir de outro modo, voltando ao início da natureza.

Ao seu modo, a irmã de Iris vai construindo sentidos, mas não de forma ingênua, e sim com os recursos emocionais de que dispõe, assim alterna alegria e tristeza, realidade e fantasia, usa arte para externar a dor e o afeto pela irmã, tenta se colocar no lugar dela para entender o que está passando, procura não gerar mais sofrimentos à sua família escondendo as emoções, solidariza-se ao silêncio e à dor de sua avó, pensa em formas de levar carinho à irmã por meio das coisas das quais ela gosta –  modos de suplantar a sua própria dor.

E, neste processo, de dar sentido para seguir vivendo, ressignifica a própria vida, como diz: “pra ser feliz qualquer coisa é bastante e quem é feliz é do tamanho de um gigante” (p. 55), pois a vida é hoje e está nos pequenos detalhes: em tomar mais sorvete, em passear mais, em contemplar a beleza de estar aqui. Ressignificação revelada ainda na compreensão da despedida da vida: o que acontece com quem morre? Para onde vai? Acredita-se que os que se foram deste mundo físico passaram a viver em nós, em nossas lembranças e em nossas memórias, vivem de outras formas, de maneira que somos povoados por aqueles com os quais convivemos e que deixaram suas marcas em nós.

É um livro difícil, porém necessário porque enfatiza um tema muito próximo de nós, pois já acompanhamos algum conhecido ou vimos um ente querido vivê-lo. Contudo, o fato da narradora ser uma criança imprime um certo humor e uma leveza, mesmo que os aspectos sofridos não deixem de ser evidenciados. O olhar de como a criança dá sentido ao vivido e à atenção que recebe da família revela-nos o quanto necessitamos, adultos e crianças, de dialogarmos sobre o assunto, e o como a literatura pode ser um lugar para iniciarmos e conduzirmos esta conversa.

A primeira publicação do livro foi em 1982 na Alemanha e trinta anos depois pela Editora Pulo do Gato que, corajosamente, tem apostado em um catálogo que nos auxilie a dialogar sobre questões humanas, demasiadamente, humanas. Na última página, presenteia-nos com uma bela reflexão de Bartolomeu Campos de Queiroz sobre o eterno, do livro Escrituras.

Um livro necessário

Quando o artista (ator, diretor, produtor, escritor) Lázaro Ramos publica o livro “Na minha pele” (Objetiva, 2017), abre a possibilidade de discutirmos e refletirmos sobre o racismo que sorrateiramente encontra-se entre nós.

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A dimensão que Lázaro alcança pelo conjunto de sua obra artística, ainda que não queira que suba à cabeça ou que seja uma exceção à regra, num país onde mais de 50% da população são de negros, gera uma notoriedade que traz um chamado e a importância deste lugar para as gerações que estão e as que virão, por isso é um livro necessário.

O livro não pretende ser autobiográfico e não é, não pretende ser panfletário e não é, não pretende ser acadêmico e não é.  Então, o que é? É um convite ao diálogo sobre a pluralidade em que habitamos ou deveríamos habitar. Mas, parece-nos também ser um “acerto de contas” (não que haja necessidade, mas pode ser pelo chamado) com o passado, resgate de sua história e do racismo disfarçado; com o presente, de colocar o tema em debate, inclusive com muitos jovens negros que nas redes sociais assumem quem são; e com o futuro, a paternidade que questiona o quanto estamos contribuindo, de fato, para um mundo mais livre e igualitário.

O tema do racismo é difícil por sua invisibilidade na sociedade, pela pseudocordialidade entre as etnias no cotidiano marcada pelo “todos somos iguais se cada um souber qual é o seu lugar”. E, magistralmente, Lázaro vai nos mostrando, sem vitimismo ou exceção, que nosso lugar é onde quisermos estar, porém ainda fruto de muita luta individual.

Entretanto, está lá no livro que isto tem mudado com essas gerações do tombamento que assumem e reivindicam suas negritudes e seus lugares no mundo, fortalecendo a luta por uma sociedade mais plural e igualitária. Neste sentido, o livro de Lázaro contribui para fortalecer e ampliar o diálogo, ao revisitar o passado e questionar o presente, sendo uma ponte para o futuro que desejamos construir.

Há ainda muito o que caminhar, mas temos dados passos importantes e estamos mais próximos, além de não estarmos tão sozinhos. O livro é leitura necessária em todas as escolas públicas (onde está parte da população negra) deste país, para que crianças e jovens negros reconheçam suas representatividades, suas potências e seus direitos de serem quem são e de terem orgulho de suas histórias.

De afetos, fragmentos e silêncios somos feitos

Sabe quando um livro pega de jeito, aquele arrebatamento impossível de frear? Então, foi assim com a narrativa de Carrascoza, uma leitura de encontro e de reconhecimento.

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No livro “Aos 7 e aos 40”, um homem olha para o passado buscando seguir em frente, por meio desses dois momentos da vida, revisita o passado aos 7 anos com uma escrita em que há uma métrica poética, própria e fechada, para no capítulo seguinte dialogar com o presente aos 40, em uma escrita fragmentada, incompleta e aberta. Observa-se também uma relação entre oposições ou contradições que formam a identidade, visto que aos 7 anos vai-se depressa e aos 40, o que se deseja é ir mais devagar. Se na infância, era dia, na maturidade é noite. Nos 40, não se tem a distância que permite reinventar o passado ao passá-lo duas vezes pela memória. Ainda que de lugares opostos, esses dois momentos se complementam naquilo que o homem torna-se ao reencontrar os fios do cotidiano do que era, o menino no homem que é e está sendo. Às vezes, é preciso retornar ao passado para lembrar quem somos e de que afetos somos feitos.

A segunda leitura arrebatadora foi “Caderno de um ausente” que compõe a trilogia do adeus (no primeiro, João torna-se pai aos 50 anos e escreve para a filha recém-nascida aquilo que imagina que será sua ausência; no segundo, a filha responde ao pai e no terceiro, a relação é do filho, agora pai com seu filho, neto de seu pai falecido, um exercício de viver o presente).

O primeiro trata-se de uma prosa poética (para ser lido em voz alta) sobre perdas, antepassados e silêncios. É um inventário de vida que se constitui em um testamento vivo, legado que o personagem gostaria de deixar para a filha, em que expõe sua força, mas sobretudo sua fraqueza humana, coisas que gostaria de ter dito, ter ouvido ou ensinado, a impotência para protegê-la diante dos males do mundo em que não há álibi nem salvação, porque viver dói, mas para sabê-lo é preciso atravessar a trajetória, vivendo.

A narrativa bela, poética e triste deixa-nos evidente que, no fundo, no fim da caminhada, o que nos resta somos nós, as ausências e os silêncios, de que somos feitos de muitos fragmentos e de que só temos nossa história como companhia.