Aninha foi uma criança que nasceu no tempo errado enquanto seu pai agonizava de doença, sentia-se feia, triste, deslocada, sem beijos de mãe ou de pai para festejar, como revela-nos em seus poemas.
A vida foi dura na infância e não foi diferente no tempo adulto, no entanto, começou a transformar as pedras do caminho em poesia e, segundo ela, no tarde da vida. Foi quando a menina abobada inventou um personagem para ser outra, reinventou-se a si mesma. Mas, para ela, nunca realizou nada na vida, pois sempre foi tolhida por um lugar menor no qual a colocaram e a que se acostumou o seu destino.
E assim, Aninha inventou Cora Coralina, cria também da Mestra Silvina, professora daquela escolinha pobre e dura da infância, que ajudou a desencantá-la e deu-lhe um nome literário.
Aquela que não devia ter nascido e era desajeitada do mundo precisou renascer duas vezes: uma fazendo doces para viver e a outra, criando poesia também para viver. A poeta que cantou a vida humilde do povo, de verso simples, ressignificou as pedras de Drummond e o encantou com a beleza que via no difícil cotidiano.
Cora Coralina ao olhar o passado reinventou memórias, criou um presente e deixou saberes poéticos para outros futuros: “para a gente moça, pois, escrevi este livro de estórias. Sei que serei lida e entendida” (Nos becos de Goiás).
Eis o legado de Cora Coralina, a personagem de si mesma, que criou um modo de contar velhas estórias, escalando montanhas, removendo pedras, plantando flores e fazendo doces. Uma mulher que possuía muitas vidas dentro de si mesma, muitas mulheres, aquelas mulheres simples, porém guerreiras do cotidiano que, como formiguinhas, reinventam a vida em todos dos cantos desse país continental: a cabocla velha, a cozinheira, a lavadeira, a mulher do povo, a mulher roceira, a mulher da vida – todas são Cora e todas somos nós, como em “Todas as vidas”:
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pro fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai de santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’ água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano. (…)
Vive dentro de mim,
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada. (…)
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras”. (p.31-33, Nos becos de Goiás)
Lindo
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