A despedida da vida aos olhos de uma criança

“Viver é muito perigoso” (Guimarães Rosa) é o que relembramos ao ler “Iris: uma despedida”, escrito por Gudrun Mebs e ilustrado por Beatriz Martín Vidal, publicado pela Pulo do Gato (2012), por que? Porque nos remete à nossa condição humana em que uma curva do caminho pode mudar tudo.

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Iris é uma menina que acorda, num dia qualquer, com os olhos literalmente virados, é levada ao médico, diagnosticada com uma grave doença e tem o cotidiano familiar virado de cabeça para baixo. Quem nos conta tudo é sua irmã, um ano e dois meses mais nova, que vai buscando dar sentido ao vivido entre o engraçado da visão vesga e as tragédias sucessivas do processo da doença expressas nos gestos dos familiares.

A busca percorre os estágios da doença: o diagnóstico; o significado frio e estático do dicionário (que não dá conta de explicar, nem de aplacar os sentimentos); o silêncio, a agitação e a aflição da família que denotam a gravidade da situação; a compaixão e a solidariedade enviesada dos outros; a cirurgia de emergência; a esperança de que a rotina volte ao que era; até a dor da despedida.

Na família, somente a personagem doente tem nome, visto que as atenções estão dirigidas para ela, demonstrando o quanto num trauma como este apagamos outras subjetividades, outros sofrimentos, inclusive, daqueles que precisam lidar com a situação e com a impotência diante dos fatos. Além deste apagamento, os adultos também excluem a criança de explicações, das conversas, dos procedimentos do tratamento, como se quisessem poupá-la, como se ela também não sentisse a dor da doença da irmã e de sua ausência, a dor da família e a dor da precariedade do afeto.

Entretanto, este comportamento pode expressar uma dificuldade dos adultos de lidarem com a morte, principalmente a de filhos e netos (porque não é da ordem “natural” da vida assisti-los partir), visto que também estão tentando construir sentidos, ou seja, não é porque são adultos que compreendem os mistérios da morte ou sabem as respostas sobre aquilo que é do humano: a finitude.

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As oito imagens de Beatriz Vidal expressam a sensibilidade no tratamento do tema, as flores azuis que vão germinando da cabeça de Iris, se apoderam de seu corpo, transformam-se, encerram e inauguram um novo ciclo de vida, em que se passa a existir de outro modo, voltando ao início da natureza.

Ao seu modo, a irmã de Iris vai construindo sentidos, mas não de forma ingênua, e sim com os recursos emocionais de que dispõe, assim alterna alegria e tristeza, realidade e fantasia, usa arte para externar a dor e o afeto pela irmã, tenta se colocar no lugar dela para entender o que está passando, procura não gerar mais sofrimentos à sua família escondendo as emoções, solidariza-se ao silêncio e à dor de sua avó, pensa em formas de levar carinho à irmã por meio das coisas das quais ela gosta –  modos de suplantar a sua própria dor.

E, neste processo, de dar sentido para seguir vivendo, ressignifica a própria vida, como diz: “pra ser feliz qualquer coisa é bastante e quem é feliz é do tamanho de um gigante” (p. 55), pois a vida é hoje e está nos pequenos detalhes: em tomar mais sorvete, em passear mais, em contemplar a beleza de estar aqui. Ressignificação revelada ainda na compreensão da despedida da vida: o que acontece com quem morre? Para onde vai? Acredita-se que os que se foram deste mundo físico passaram a viver em nós, em nossas lembranças e em nossas memórias, vivem de outras formas, de maneira que somos povoados por aqueles com os quais convivemos e que deixaram suas marcas em nós.

É um livro difícil, porém necessário porque enfatiza um tema muito próximo de nós, pois já acompanhamos algum conhecido ou vimos um ente querido vivê-lo. Contudo, o fato da narradora ser uma criança imprime um certo humor e uma leveza, mesmo que os aspectos sofridos não deixem de ser evidenciados. O olhar de como a criança dá sentido ao vivido e à atenção que recebe da família revela-nos o quanto necessitamos, adultos e crianças, de dialogarmos sobre o assunto, e o como a literatura pode ser um lugar para iniciarmos e conduzirmos esta conversa.

A primeira publicação do livro foi em 1982 na Alemanha e trinta anos depois pela Editora Pulo do Gato que, corajosamente, tem apostado em um catálogo que nos auxilie a dialogar sobre questões humanas, demasiadamente, humanas. Na última página, presenteia-nos com uma bela reflexão de Bartolomeu Campos de Queiroz sobre o eterno, do livro Escrituras.

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